quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Imprensa


Revista Tietes – Segunda, 10 de novembro de 1997

Confirmado: novo álbum de Roxanne foi gravado nos estúdios da mansão do ex
Muito mistério e bocas fechadas levaram nossa equipe a procurar a verdade por trás das fofocas de bastidores. Mesmo separados já há alguns meses, Roxanne e o ex-marido, líder da banda LP se encontraram diversas vezes durante a gravação do novo CD da cantora, a ser lançado no Ano Novo.
Apesar de estar morando em um apart-hotel afastado, a roqueira utilizou o estúdio na mansão, que Ricardo continua a ocupar após a separação, para produzir seu primeiro álbum solo. Seu produtor não negou a notícia e ainda diz que o casal manteve a amizade apesar de todas as especulações da imprensa. Roxanne ao ser abordada por nossa equipe disse: “Eu sempre gostei do estúdio da mansão e não vejo motivo algum para não utilizá-lo. Eu só me mudei por ser mais conveniente para mim, mas ela continua a ser de minha propriedade.”
(Leia a letra do seu novo single.)

Nos Meus Braços
Um dia eu tive você em meus braços
Frágil, carente e dependente
Queria apenas te abraçar e ofertar meu amor
Estava feliz nos meus braços
Estava feliz com você em meus braços
Apartaram você dos meus braços
Separação, dor e frustação
Não podia mais te abraçar e ofertar o meu amor
Estava feliz nos meus braços
Estava feliz com você em meus braços
Sobrevivi sem você em meus braços
Trabalhei, sofri e lamentei
Sem te abraçar e falar do meu amor
Estava feliz nos meus braços
Estava feliz com você em meus braços
Ainda hoje sonho com você em meus braços
Forte, gentil e independente
Vou te abraçar e explicar o meu amor
Será feliz em meus braços
Serei feliz com você em meus braços
Um dia eu terei você em meus braços
Novamente...

sábado, 25 de setembro de 2010

Recomeçando


Ao chegar no alojamento uma depressão intensa tomou conta de mim. Não lembro bem como foi meu primeiro mês. Estava imersa em angústia, dor e desespero. Meu violino ficou encostado em um canto do quarto e eu só o tocava durante as aulas. Quando voltava, ficava trancada neste quarto de dimensões amplas com uma decoração nada acolhedora, deitava sobre a cama vazia e imensa, sem disposição para nada.



Reynaldo aparecia algumas noites e me fazia companhia no jantar. Eu me esforçava para ser uma boa amiga e tentava ingerir toda a comida para não lhe preocupar. Depois da refeição ele me deixava à minha porta e seguia pela noite fria em direção ao seu próprio alojamento a duas quadras do meu.



Minha depressão e desamparo me levaram a colocar um piercing no nariz e tingir os cabelos de violeta, os quais nunca soltava e mantêm um ondulando incomum, por que eu não mais os escovo. Não havia comprado muitas roupas novas, embora meu corpo tenha crescido em pouco tempo, não senti ânimo para compras.



Aos poucos e com a ajuda do Reynaldo, sempre presente, me recobrei e me dediquei aos estudos. A vinda à Universidade trouxe novos recursos os quais só tinha acesso na escola e na biblioteca. Há um moderno computador no meu próprio quarto e recebo uma bolsa de estudos muito superior às minhas necessidades. No refeitório, uma servente prepara três refeições diárias. Nada muito saudável, contudo não estava preocupada com minha alimentação.



Entre o meu quarto e o refeitório há uma ampla e confortável sala, onde os alunos podem receber visitas, estudar ou simplesmente buscar um entrosamento. Ao passar por aquele salão me sentia como um fantasma, arrastando suas correntes e exibindo meu semblante inconformado, sem me dirigir a qualquer pessoa presente.



Almejando sair da inércia e autocomiseração, resolvi escrever. Sento em minha cama e com o auxílio de um presente adorado do passado, o qual sempre tive receio de usar; busco as respostas para a deserção do meu pai. Não encontro nenhuma, contudo a escrita me ajuda a colocar a mente em ordem. Deparar-me com as lembranças dos momentos felizes da minha infância e da nossa viagem de férias, soluciona parte da minha angústia. Entre tantas incertezas, eu encontro nessas alegrias a motivação para não desanimar pelo abandono.



A minha maior dificuldade é voltar a sentir conexão com os sons. Dentro de mim, ao tocar, há apenas um vazio profundo. Não ouço mais melodia alguma, muito menos sinto a música fluir como anteriormente. Bloqueei de alguma forma a minha única razão de viver e isso me consome a cada dia, meu estado é de total frustração.



Li um artigo explicando o quanto a ioga ajuda na concentração e alivia os sintomas da depressão. Por isso comprei um vídeo na banca de jornal e pratico todos os dias no segundo andar, onde existe uma televisão com um aparelho de DVD. Com a única intenção de reencontrar a música em meu interior.



Uma das moradoras do alojamento me viu praticando e perguntou se poderia se unir a mim. Apesar de tudo, o abandono não me fechou para o contato com as pessoas. Ao contrário, me ajudou a abrir meus olhos para os seres humanos a minha volta e aceitei a companhia de Tânia. Uma jovem morena clara de cabelos e olhos castanhos, cuja presença é sempre reconfortante.



Questiono essa nova abertura em mim, eu provavelmente acreditava, em algum lugar do meu ser, que deveria ser apenas a garotinha do papai e não me permiti outro envolvimento. Talvez por isso sentia-me traída quando ele passava seu tempo com as mulheres. Eu fui tola e egoísta nesta relação. Desejando mantê-lo só para mim.



Possivelmente um bom psicólogo falaria do meu “Complexo de Elektra”. A filha apaixonada pelo pai e, de certa forma, era realmente isso, sem a doentia necessidade de um contato mais íntimo. Quanto mais eu analiso a questão em meu interior, mais eu percebo o meu egoísmo e insensibilidade durante os últimos anos. Este tipo de autoanálise não é muito bom para mim, pois fico me auto punindo por um passado sem volta.



A ioga me ajuda a desligar do passado, a encontrar paz no dia atual. Entretanto, mesmo com uma prática diária não recupero a minha música. Eu recomecei a tocar violino no meu quarto, almejando ouvir novamente a melodia em meu interior, sentir-me enlevada pelo som do meu instrumento.



Ainda estou distante das percepções plenas dos últimos anos e minha frustração aumenta. Todavia fui surpreendida ao deparar-me com a Emília sentada na porta do meu quarto ao término de uma execução. Achei engraçado seus modos ao me pedir desculpas e ao mesmo tempo declarar o quanto apreciava o som do violino quando eu o toco.



Fiquei muito emocionada quando ela me pediu para executar minhas melodias no salão principal. Afirmando: “Assim todos vão poder escutar este som perfeito e angelical”. Por um momento eu me debati em sentimentos contraditórios de orgulho e culpa. Estava realmente orgulhosa pelo elogio, principalmente por não ser o meu melhor momento. Ao mesmo tempo me senti culpada por não conseguir mais me conectar e principalmente por me orgulhar quando deveria estar buscando o meu melhor.



Emília é uma jovem negra de cabelos escuros e expressivos olhos castanhos emoldurados por óculos de grau. Contudo, seu jeito animado e divertido é seu maior atrativo. Alguns minutos ao seu lado me fizeram esquecer meu dilema e finalmente sorrir.



Todos os dias toco meu violino na sala do primeiro andar, por pelo menos três horas antes do jantar. A audiência não é constante. No entanto, sempre há um ou dois moradores sentados no sofá escutando a minha música. O sentimento de respeito e admiração no semblante das pessoas é uma novidade agradável para mim.



Quando a música me enlevava e me transportava a um mundo perfeito e pleno de harmonia, meu maior incentivo para não ficar eternamente em estado de transe, sempre foi uma necessidade premente de me comunicar com as pessoas através do meu violino. Eu só vejo uma forma de fazer isso, executar minha melodia interior para os outros.



Este é o real motivo para eu tocar minhas canções e não interpretar autores consagrados nos finais de tarde no alojamento. Mesmo sem sentir a transcendência com a música, gostaria de alcançar alguém neste lugar. É um desejo absurdo e utópico, entretanto eu tenho essa certeza de um dia, em algum lugar, unir o mundo com a sensação sublime do som do meu violino.



Algumas vezes parece irreal, um devaneio ou delírio da minha mente, em outros dentro de mim há uma força capaz de dizer suave e doce: “Esse é o seu propósito e objetivo, não esmoreça!” Assim, dia a dia, imagino transportar as pessoas por esses momentos transcendentes com a minha melodia. Sento à mesa no refeitório, geralmente, com meus pensamentos voltados para este propósito.



Coincidentemente, Felipe confirmou minha linha de pensamento. Certa noite perguntou se podia acompanhar-me no jantar. Sua conversa realmente me desconcertou, agradeceu pelo desfecho adorável dos finais de tarde. Ao ouvir minha música ele se refaz do longo dia de estudos e as saudades de casa são amenizadas. Era algo totalmente inesperado, descobrir estar partilhando com alguém, parte do meu anseio.



Conversamos durante toda a refeição, é um rapaz muito agradável. Dorme no primeiro andar e seu quarto é praticamente ao lado do meu. Sua tez negra contrasta com seus enigmáticos olhos verdes e cabelos castanhos. A face de traços marcantes e brutos não rouba a gentileza do seu olhar. Senti-me muito bem ao seu lado e estou descobrindo uma nova face minha. Talvez, este distanciamento da música me aproxime mais das pessoas.



Reynaldo continua a me fazer companhia. Confio nele como em um irmão mais velho. Embora ele trabalhe e estude muito, nós sempre nos encontramos. Algumas vezes apenas para conversar em meu alojamento, outras para dançar no bar da Universidade, onde alguns alunos praticam em seus instrumentos favoritos e aproveitam para ganhar uns trocados, executando e cantando músicas da moda.



Meu amigo trabalha no Teatro à noite e, mesmo sozinha, frequento o bar  nos fins de semana. Algumas vezes penso em afogar minha depressão com a bebida. Entretanto, li muito sobre o assunto e sei sinceramente que o álcool nunca será a solução dos meus problemas. Então peço apenas um copo quando muito, e bebo apenas um gole ou dois. Para parecer normal como todos ali.



Em minhas incursões pelo Três Pinheiros, observo as pessoas ou simplesmente aprecio a música. Como é o único bar da Universidade, vários grupos se reúnem ali para beber, jogar sinuca ou simplesmente namorar e flertar. Minhas observações me levam a notar o quanto sou solitária, não só pelo abandono do meu pai, pela primeira vez percebi em mim as necessidades normais de uma mulher.



Eu sentia muita vontade de namorar quando conheci o Evandro. Em geral meu comportamento arredio e retraído afasta as pessoas. Mesmo assim, ele é corajoso e persistente o suficiente. Sentou-se ao meu lado no bar e procurou conversar comigo. Sua fala agradável, seus olhos verdes repousados nos meus e sua perna quente encostada em mim, despertaram a minha libido.



A princípio só ouvi, no entanto sua voz grave e ao mesmo tempo suave me seduz a ponto de arrepiar a pele. Ao seu lado meu coração bate fora de ritmo, algumas vezes rápido e outras parece parar de funcionar. Olho para sua tez quase tão clara quanto a minha, seu rosto perfeito coberto por diversos piercings, seus cabelos pintados de verde e fico perdida.



Minha inexperiência latente o mantém distante, talvez por eu não saber responder suas perguntas, ou por apenas ouvir sem nada falar por mais de uma hora. Contudo, antes de se despedir, ele pediu meu telefone e eu lhe dei o número com um sorriso genuíno.



Neste lugar, conheci também a Francisca. Muito extrovertida, a loira de olhos cinzentos senta ao meu lado e comenta sobre cada um dos rapazes presentes. Qual é o mais bonito, o melhor beijo... Fala de forma explícita sobre amor e paixão. Sua conversa fácil e divertida é um momento de agradável leveza em minha vida e acabamos criando uma amizade singular.



Algumas vezes, apenas sentamos de frente para a mesa de sinuca e conversamos até o bar fechar. Ela me conta sobre seus namoricos e flertes, tem mania de apelidar cada um dos rapazes de modo engraçado. Eu me perco em suas histórias mirabolantes e intimamente questiono se são todas reais. Raramente ela me pergunta sobre a minha vida amorosa, ao ser questionada desconverso timidamente e voltamos para seu assunto preferido: ela mesma.



Quando a saudade do meu pai aperta, vou ao estúdio de dança da Universidade. Sempre tem um salão desocupado, onde treino na barra. Relembro cada instrução de papai mentalmente, como um roteiro, e ao dar alguns passos sinto-me próxima a ele. A dança nos afastou e ao mesmo tempo é através da dança que consigo alcançar uma parte dele.



Há em mim uma esperança crescente no retorno do meu pai. Toda vez ao ouvir o toque remitente do telefone no alojamento, eu corro a atender. Desejando ouvir sua voz quente e amorosa dizendo estar com saudades e sentir muito por me deixar sozinha.



Contudo, nunca atendo um telefonema seu. Normalmente sinto uma ligeira depressão ao ouvir qualquer outra voz. Exceto ao escutar o tom grave e suave do Evandro. Ele me liga sempre para conversar por pelo menos quinze minutos, algumas vezes pergunta se desejo encontrá-lo. Não respondo, o medo me trava e acabo desviando o assunto.



Tenho medo dele descobrir o quanto sou inexperiente, medo de ser julgada e condenada ao primeiro beijo. Medo dele ser como meu pai e estar apenas interessado em uma relação furtiva e leviana. A cada ligação eu sinto mais medo, pois a cada ligação eu fico ainda mais apaixonada.



Com a passagem dos meses o final do ano desponta junto às provas finais. Minha maior preocupação não são as provas teóricas, eu estudei o suficiente apesar das minhas escapadas nos finais de semana. Estou inquieta devida a minha primeira audição na aula de violino.



A inquietude é profunda pela ausência de comunhão com a minha música. Continuo a almejar sentir a transcendência abundar meu ser durante a execução do meu instrumento, ouvir o som em meu âmago. Acredito estar aquém da aprovação na matéria principal do curso.



Procurei minha professora e expliquei sobre minhas dificuldades. Todavia esta conversa teve um resultado inesperado. Catarina olhou para mim com espanto quando pedi desculpas por meu desempenho medíocre. E comentou séria: “Nunca diga isso, tive muitos alunos ao longo desses anos na Universidade e nunca um foi tão promissor quanto você! Você é única, nasceu com um dom e deve sempre acreditar nisso. Por que eu acredito na sua música.”



Após esta conversa, minha forma de encarar minhas dificuldades mudou. E uma amizade inesperada brotou entre mim e a professora de violino. Eu devia agradecer por ter um dom, agradecer por conquistar uma bolsa de estudos sem nem ao menos aspirar por ela. Ter a capacidade de entrar na Universidade antes mesmo de completar o Ensino Médio. No fundo, apesar de descobrir finalmente o quanto eu sou capaz, noto o quanto estou perdida.



Em meio as minhas divagações, encaro de frente minha imagem e não me encontro. Minha aparência física mudou, no entanto não é isso a me afastar de mim mesma. Eu não enxergo mais aquela aura de luz a minha volta, o amor batendo forte em meu peito, a música no meu interior.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Imprensa


Revista Tietes - Segunda, 4 de novembro de 1996

Flagrado o baixista da Banda LP com ninfeta nos bastidores do Show na Capital
O polêmico baixista da Banda LP, Ricardo Fernandes, foi surpreendido por nosso fotógrafo aos beijos, em seu camarim logo após o show deste domingo. Para surpresa dos fãs de Roxanne, a mulher em seus braços não era sua bela esposa e sim uma jovem loira não identificada. Segundo uma amiga da moça que tentou impedir nossa entrada e também não se identificou, a ninfeta tem apenas dezesseis anos.
Nossa equipe procurou sua esposa ontem à noite, antes de publicar a foto e a cantora sempre disposta a receber a Imprensa, desta vez não permitiu a entrada de ninguém em seu camarim. E nem fez qualquer declaração sobre o acontecimento.




Revista Tietes - Segunda, 7 de julho de 1997

Divórcio e Ruína da Banda LP
Semana passada, após uma série de especulações sobre o marido infiel da cantora Roxanne, flagrado no ano passado com uma ninfeta nos braços, a revelação do baixista deixou a mídia boquiaberta: “Fui fraco e não respeitei minha esposa, nem por isso deixei de a amar e sofro com a separação”, declarou Ricardo a Imprensa.
Sua ex-esposa, sem qualquer pronunciamento a mídia, cumpriu ao lado da Banda LP os contratos assumidos antes do flagrante. Logo após o término dos compromissos, assinou um termo de divórcio amigável. A separação do casal também afastou a cantora do grupo.
Ricardo diz que volta a cantar suas músicas, junto a seus irmãos e procura apenas um baixista para o substituir. Roxanne vai lançar sua carreira solo no final do ano e já está gravando um novo CD.

sábado, 18 de setembro de 2010

Quando Tudo Mudou...


Em sua introspecção, papai treinava exaustivamente em nossa sala, quando não estava “por aí”. Muitas vezes ele aproveitava o som do meu violino para executar novos passos de dança, criando um balé único e admirável com a minha sonata. E por alguns meses foi a única forma de comunicação entre nós.



Eu passei a tocar de olhos abertos para observar seu desempenho, e um dia me surpreendi. A mesma aura de luz a me envolver durante a execução da minha música o cingia, emprestando brilho aos seus passos, alumiando seu corpo. A alienação o envolvia radiosamente e era superior a minha, quando interpreto a melodia interior.



Não consegui prosseguir com a canção, contudo isso não o impediu de se manter em movimento, estava próximo a um desvario. Lembrei-me da fábula de Hans Christian Andersen, “Sapatinhos Vermelhos”. Minha percepção aguçada notava em seus pés sapatilhas vermelhas ao invés das usuais negras. Esta ilusão totalmente intuitiva aludia o conto.



A história fala sobre uma menina vaidosa apaixonada por seus sapatos vermelhos. Ao colocá-los passa a bailar belamente, aos poucos os sapatos tomam vida própria e a fazem dançar sem parar. Em seu sofrimento tenta arrancá-los de seus pés, porém não consegue. Para não morrer vencida pela fome e o cansaço, pede para que lhe amputem os pés. A moral trágica da fábula a torna uma velha pedinte sem amigos ou dinheiro.



Eu olhava com terror para o meu pai ao relembrar do conto. Procurei não me deixar envolver por pensamentos negativos e o medo... Entretanto não conseguia afastar a imagem das sapatilhas vermelhas surgindo em seus pés. Desejava acreditar ser apenas uma miragem, a representação de meus receios tomando forma a minha frente.



Naquele dia, papai interrompeu seus movimentos apenas para jantar. O aroma do salmão entrou por suas narinas e o acordou de seus devaneios. Foi quando observei: a comida era o melhor estímulo para tirá-lo do transe. Todas as noites eu utilizava o mesmo artifício.



Nas férias da primavera, – em qualquer outra parte do país seria verão, em Colina Formosa são dias de sol fraco, com chuvas esparsas e noites frescas, caracterizando uma extensão da primavera – meu pai raramente voltava para casa depois dos ensaios. Alguns dias, eu passava na biblioteca, outros eu ia observá-lo dançar e havia dias aos quais preferia ficar sozinha com meu violino.



Certo dia, papai voltou tarde, enquanto eu me preparava para dormir. Nem falou comigo, se encaminhou direto para geladeira, provavelmente faminto. Deitei incerta, tentava manter-me acordada para receber um beijo de boa noite, todavia ele não aconteceu. Vencida pelo sono mergulhei nos braços de Morpheus, o senhor dos sonhos.



Ao invés de belos sonhos, tive um pesadelo assustador, uma fumaça negra invadia toda a casa e eu mal conseguia respirar. O odor de comida queimada era devastador e me fazia tossir. Fiquei em dúvida se o cheiro acre era real, ou se ainda estava dormindo. Levantei-me da cama assustada.   



Papai estava dançando completamente absorto da fumaça a encobrir uma panela no fogão. Corri até ele para desligar o fogo antes de queimar a casa toda. A comida estava estragada, assim como a panela. Para nossa sorte eu acordei a tempo.


Levei-a bem próxima do meu pai e o chamei mostrando o estrago. Somente ao repetir o seu nome, ele finalmente olhou para mim. Ao despertar de seu transe, o pânico tomou conta da sua expressão. O ambiente inundado por uma fumaça negra, o utensílio em minha mão completamente queimado, assim como o alimento dentro dele, contribuíram para o deixar atordoado.



Sua maior preocupação era se eu estava bem, me abraçou com todas as suas forças se desculpando e chorando agarrado a mim. Dizendo o quanto ele se tornou um péssimo pai, me pedindo perdão ininterruptamente. Eu tentei tranquilizá-lo, detestava vê-lo tão assustado. Aos poucos ele foi se acalmando sem me soltar nem por um instante.



Eu me deixei levar por aquele abraço, triste pela ocasião, contudo me regozijava com o afago. Há muito eu o achava distante e poucos eram nossos momentos de carinho nos últimos meses. Sentia muita falta de poder me abandonar em seus braços. E mesmo sendo uma situação totalmente adversa, eu estava feliz por compartilhar novamente do seu afeto.



Ficamos absorvidos um pelo outro por um longo período. Papai me soltou apenas para falar do seu desejo de ser um pai melhor, da sua dificuldade de lidar com as decepções da vida, explicou sobre a dança o levar a um estado tão profundo de êxtase e o ajudar a esquecer completamente dos problemas.



Eu não sabia quais eram suas decepções e não me sentia a vontade para perguntar. Embora fossemos muito unidos, eu tinha vergonha e medo. Vergonha de ouvir sobre as mulheres com quem saía, medo de ser eu um dos seus problemas. Para mim, meu pai era um verdadeiro herói e eu estava muito longe de ser a filha perfeita. Então me calei e mais tarde me culpei por nunca ter questionado.



Quando finalmente se afastou, estava decidido a aproveitar as minhas últimas semanas de férias com uma viagem. Ligou para o aeroporto reservando passagens para uma Ilha paradisíaca no pacífico, para a tarde seguinte. Disse o quanto desejava levar-me para um lugar onde o sol brilhasse forte, como na cidade onde eu nasci. Onde eu poderia tomar banho de mar e ele se afastar da dança por uns dias.



Perguntei do trabalho, estava preocupada por papai abandonar o teatro sem dar satisfação. Contudo, ele me lembrou do festival de música programado para o início daquele final de semana e a Companhia de Dança não teria apresentações até o próximo mês. Ele poderia se ausentar, era só avisar o diretor da Companhia. Eu ansiei por aquele festival, mas com certeza preferia as férias ao seu lado.



No dia seguinte um táxi nos levou até o aeroporto mais próximo. Eu não entendia nada sobre passaportes e viagens de avião. Foi a minha primeira e me pergunto como ele conseguiu arranjar tudo tão depressa. Talvez em outro momento estivesse planejando levar-me para fora do país.



Papai só conseguiu vaga em um hotel de luxo na Ilha, e por isso economizamos nos passeios. Foram dias especiais mesmo assim. Ficávamos a maior parte da manhã na praia particular reservada aos hóspedes, nos divertindo ao tomar sol e ao mergulhar no mar. Ou simplesmente sentados à sombra, vendo as ondas lambendo a areia.



Na hora do almoço caminhávamos pelo movimentado calçadão e escolhíamos uma das barracas na praia para fazer nossa refeição. Depois passeávamos pelo lugar, conhecendo não só as praias, como todas as atrações turísticas.



Meu pai permanecia ao meu lado boa parte do tempo, contudo sempre aproveitava minhas distrações, com as novidades ao meu redor, para flertar com as belas jovens locais. Eu procurava relevar, afinal durante todos os dias se dedicava a mim e se esforçava para apagar de minha memória sua ausência nos últimos meses.



Algumas noites, eu acordava sozinha no quarto. Não era ingênua e sabia o motivo de sua ausência. Eu realmente vivi dias felizes ao seu lado na Ilha, apesar de suas saídas furtivas. Então fechava os olhos e me entregava aos braços de Morpheus até a manhã seguinte. Embora ele sumisse durante parte da madrugada, quando eu acordava seu sono era sereno na cama ao lado. Era o suficiente para mim.


Eu me levantava cedo e levava o meu violino para a varanda do hotel, tocava suavemente por uma hora ou duas. Procurava sincronizar o som com o das ondas na praia e me regozijava com a experiência única. Era interrompida apenas pelo seu chamado para fazermos o desjejum. Foram dias felizes e estão guardados com carinho em minha memória.



Quando voltamos para casa, meu pai parecia mais relaxado. Porém o retorno ao trabalho poderia novamente transportá-lo para aquele mundo de esquecimento e imersão. Tinha muito receio do que poderia acontecer ao recomeçar a dançar e notei sua apreensão quando me abraçou forte no seu primeiro dia de volta aos ensaios.



Pensei em detê-lo, pedir para ficar em casa e encontrar outra ocupação, talvez ampliando a sua horta. Entretanto não tive coragem para impedi-lo e este é mais um motivo para eu me sentir culpada, imaginando o que aconteceria se eu implorasse para não dançar mais.



Nos primeiros meses de nosso retorno, parecia tudo bem. Ele voltava para casa todos os dias após os ensaios. Sentava perto de mim na bancada da cozinha enquanto eu tocava apreciando o som do meu violino e jantava em casa todas as noites. Algumas vezes, ele saía após o jantar, contudo eu não perguntava aonde iria. Afinal, todas as manhãs ele estava ao meu lado na cama.



No entanto, ele estava viciado na sensação sublime ao bailar. Não mais o fazia apenas pelo prazer e o desejo de se tornar o primeiro bailarino da Companhia. Ele almejava pura e simplesmente se abandonar na dança e isso o afetou profundamente. Eu não suspeitava o quanto naquela época.



Uma semana antes das minhas férias escolares de inverno, imagino que a loucura da dança se infiltrou em meu pai, pois ele simplesmente não voltou para casa. Eu esperei por seu regresso, sentada no sofá até cair no sono. Acordei no meio da madrugada e resolvi ir para cama acreditando encontrá-lo ao meu lado ao acordar.



No entanto seu lugar à minha esquerda estava vazio quando acordei. Não era a primeira vez a acontecer, mesmo assim foi a primeira vez desde nossa viagem de férias e me preocupei. Eu não tinha muito a fazer na escola. Na realidade, já havia passado nas provas e as aulas agora eram apenas redundantes revisões, mesmo assim me obriguei a ir, para não me preocupar exageradamente com seu regresso.



Após a aula, resolvi conferir se papai estava ensaiando antes de voltar para casa. Encontrei o Reynaldo ao entrar no salão superior, onde aconteciam os ensaios. Ele estava muito surpreso ao me ver e perguntou sobre o meu pai, pois faltou os ensaios por dois dias seguidos, algo inédito durante aqueles cinco anos.



Eu fiquei arrasada e não falei nada. Simplesmente desatei a chorar. Reynaldo de forma gentil me abraçou e esperou meu pranto passar. Eu me agarrei àquele gesto afetuoso, percebendo não estar tão solitária quanto eu imaginava. E um sentimento totalmente arbitrário de felicidade preencheu meu ser, por encontrar um outro amigo além do papai.



Quando as lágrimas secaram, Reynaldo me convidou a sentar no sofá e perguntou o que estava havendo. Expliquei sobre o sumiço do meu pai e minha esperança de encontrá-lo ali. Preocupado comigo, comentou sobre as inúmeras mulheres com as quais papai saía, ele tinha o número de algumas e juntos começamos a ligar para elas.



Após várias ligações, nenhuma sabia dizer aonde meu pai se encontrava. A minha aflição aumentou e recebi um conselho de meu novo amigo o qual ouvi com atenção: “Seu pai me contou sobre sua bolsa para a Universidade. Por que não liga para lá e pergunta se ainda estão dispostos a te aceitar antes do término do ano letivo. Se for o caso, vá para a Universidade! Eu vou estar sempre por perto.”



Eu resisti para aceitar seu conselho. Esperei papai voltar por toda a semana e nada aconteceu. Desesperadamente mexia nas gavetas da cômoda, procurando por algum número de telefone esquecido. Quando encontrava corria ao telefone apenas para receber mais uma negativa.



Finalmente liguei para a Universidade e expliquei minha situação. Meu pai havia assinado os documentos de matrícula meses atrás, quando voltou de nossa viagem de férias. Foi quando percebi: ele previu sua deserção. Talvez seu sofrimento fosse mais profundo e intenso do que eu poderia suspeitar. Mesmo assim, procurou deixar-me amparada de alguma forma.



Eu não imaginava o quanto Reynaldo conversava com o papai. Ao notar a coincidência entre a fala de meu novo amigo e a previdência do meu pai em deixar minha documentação da Universidade pronta para o meu ingresso, descobri ser este o seu desejo, caso ele fracassasse.



Sem relutar, juntei as coisas mais importantes e fiz minha minhas malas. O diretor da Escola de Música havia arrumado uma vaga no alojamento para mim, teria um quarto só meu e dividiria as outras dependências com mais cinco companheiros. Reynaldo me ajudou a vender os móveis da casa e finalmente entreguei as chaves ao proprietário.



Papai não voltou na última hora, embora eu mantivesse alguma esperança nessa possibilidade. Eu gostaria de tê-lo abraçado mais forte em nosso último encontro. Falado o quanto eu o amava e da sua importância para mim... Tantas coisas se perderam nessa ausência, palavras não ditas, sentimentos destroçados, a mais completa e total desolação.



Eu completava dezessete anos e não sentia vontade alguma de comemorar. Estava decepcionada com papai, me sentia abandonada e desprezada. Apenas a presença de Reynaldo me ajudou a seguir em frente. Eu começaria uma nova etapa em minha vida, mas não me sentia feliz ou ansiosa por isso.